Contos






O mundo está doente.

O homem subiu na torre de transmissão de tevê da cidade
Escalou cada centímetro, enfrentando seu medo
Havia um vento forte, que balançava seu corpo
E trêmulo, foi avançando o sinal de alerta da mente

A poucos metros, pendurou-se em uma das mãos
Equilibrou-se, e fechou os olhos
O terror lutava ferozmente no seu interior
Ao abri-los, viu o chão distante
E centenas de luzes iluminando pequenas casas
Que mais pareciam vilarejos

Agarrou-se firme novamente
E galgou passo a passo
Numa sintonia entre pés e mãos
Erguia-se lentamente

Próximo ao topo
Olhou a lua cheia aberta num céu encoberto por nuvens negras
Fazia frio, e ele começou a pensar quanto tempo já se passara
Sem que ele contemplasse a natureza
Lembrou dos filhos acordando logo cedo
E ranzinza, obrigava-os a porém meias
Sem ao menos sorri ou dar-lhes um bom dia.

Lembrou do florista que sempre lhe oferecia flores
E pensara: "Nossa, quando foi mesmo a última vez que dei flores ao meu amor?"
Ouviu no seu subconsciente a música dos novos baianos
Recordou seus momentos de infância
Apertou os lábios entre os dentes e chorou
copiosamente, chorou por tensos minutos

Respirou fundo e seguiu seu objetivo
O topo, eram lá que seus medos estavam escondidos
A chuva começou a descer lentamente
As grades da torre se tornavam cada vez mais perigosas
O risco de cair estava iminente
Mas ele irredutível subia, subia até alcançar o êxtase.

Chegando a haste da antena
Percebeu o quanto seus medos o fizeram deixar de enxergar as coisas simples
De quantas manhas passaram em suas férias, e ele jamais havia visto o sol beijar o mar
As folhas secas caídas no outono, o canto do sabiá
De subir no pé de carambolas, jamelão, ou mesmo o pé de tamarindo
Quantas e quantas vezes, gritou com os meninos:"desçam já daí crianças"
Sempre num tom ameaçador, e era apenas um pé de Jaboticaba, bem baixinho

Viu sua vida passar em flashes
Como se assistisse a um filme de terror.
Lembrou de seus pais
Quantas vezes havia dito que os amava mesmo?
Por que não sorri pela piada sem graça?

E no alto de sua ira, exclamou para o que universo o escutasse

"O MUNDO ESTÁ DOENTE"
"OUVIRAM, O MUNDO ESTÁ DOENTE"

Enxugou carinhosamente suas lágrimas
Respirou fundo
E desceu sem carregar nenhum medo
Sem qualquer fobia
Se achava agora liberto
Como se ganhasse asas


E a partir daquele dia, não deixaria de sorrir um só instante
Acharia graça até para as dificuldades da vida
Porque sentiu o amor pulsando no peito
E teve a chama da vida robusta
Gritando e se fazendo eco
Encontrando-se em si
São.
Mais vivo do que nunca.

Allima







ÉPOCA VIVA

A imagem da roça perdida
Trazia o cheiro de terra molhada
De chão vermelho de barro
Marcando as digitais dos carros de boi
Carregados com sacas de café

Na campina orvalhada
Pelo choro da noite
Uma Senzala em ruínas
Pelourinhos imponentes
Com suas correntes e cordas poidas
partidas em pedaços
formando um mosaico de dores
Gritos contidos

No altar da capela abandonada
A imagem de são João Batista
No sincretismo de fé
Possibilitando clamores
Pela justiça de Xangô

Dos cânticos africanos
Lembrando a dança de capoeira
Das rezas pedindo amor

A casa grande
intacta pelo tempo
Exibia-se majestosa
Com sua fachada branca
Detalhada em azulejos portugueses
De imensas portas e janelas
Talhadas em madeira
Pintadas de azul

Em frente a fonte seca
A escadaria de entrada
E a velha cadeira isolada
Abrigando o sossego do capitão do mato
Como se vigiasse ainda seus escravos
No ímpeto de castigar

Da varanda, podia-se avistar
A imensa cachoeira vestida de noiva
Com Véu encobrindo a mata
Pelas águas de Oxum
que avisavam a chegada
Dos navios negreiros
Através das conchas perdidas
Era possível ouvir-se o mar

No céu rajado de branco
Os gemidos de "ais" ecoavam feito canto de sabiá
Dos cemitérios de covas rasas
Protegidos por seus guardiães pretos velhos
Que tomavam conta do lugar
Como se velassem seus irmãos plantados
Na esperança de germiná-los

Era uma visita ingênua
Numa fazenda na cidade de Resende
O ano era 2012
Mas suas histórias ainda estão lá
Contando séculos vivos

Há quem diga, que todas as noites
Podem-se escutar festas e lamentos
Clamores de liberdade
Dos espíritos ali aprisionados
Cultivando a esperança
De um dia retornarem
Ao ventre da mãe África
Sem mordaças ou chicotes
Agora livres.

Allima











O Palhaço e o Poeta

A tenda estava armada
No camarim, o poeta se preparava
Pintava sua face com pasta branca
Lápis preto, sobrancelhas grandes
Batom vermelho, na boca e nariz
Finalizava com um pó brilhoso
Parecido com purpurina.

Sua cabeça abrigava uma peruca colorida
Um chapéu em forma de sorriso
Vestia a roupa apropriada, com golas e babados
O terno cheio de retalhos e adereços
Luvas azuis e sapatos marrons, com bicos compridos
Havia no peito, do lado esquerdo, uma flor que jogava água

Enquanto isso, na plateia
Arquibancadas cheias de rostos aflitos
Angustiados aguardando o início do espetáculo
alguns seguravam cachorro quente, pipoca, churros e guaraná

No centro do picadeiro, acrobatas se apresentavam
O mágico tirava um pombo branco da cartola
Uma jovem bailarina andava sob uma bola gigante
Enquanto um menino pulava dando cambalhotas na cama elástica.

E o grande momento tão esperado
Canhões de luzes focavam uma porta lateral
E eis que surge o tão fantasiado PALHAÇO SORRISO
Já chegando tropeçando, caindo no chão
Levando todos às gargalhadas

Interagia com as crianças, espirrando água pela flor
Contava piadas engraçadíssimas
E terminava o show cantando alegremente
Todos batiam palmas, felizes e emocionados
Os olhos estavam luzindo, puro encantamento.

O espetáculo terminava
O circo ia esvaziando aos poucos
Com pessoas felizes por todos os cantos

No camarim, o palhaço
Na missão de sair da personagem alegre
Usava soro, água e cosméticos
Retirando sua máscara aos poucos.
Como quem se despedisse
Frente ao espelho.

Conforme se limpava, uma tristeza o tocava fundo
Seus olhos se enchiam de emoções variadas
E eis que sai a personagem e surge o homem

O poeta, que transforma sua magia
Alegrando todos à sua volta
Esquecendo suas dores, por um instante
Transformando-se em poema
Desses completos

Como se fosse escrito por Mário Quintana
Fernando Pessoa ou Augusto dos Anjos
Era um poema de Felicidade
Que só quem ama pode ser capaz de escrevê-lo.

Levantava de sua cadeira
Vestia sua roupa surrada
E partia para seu mundo adulto.
Levando consigo todos os sorrisos despejados
Esperando retornar amanhã
Para ter novamente um reencontro
Com a eternidade

O palhaço e o poeta
Têm muito em comum
Ambos são a própria materialização da poesia
Que vaga, perdida, como quem procura morada
Fazendo sempre o grande espetáculo da terra

Há quem diga, que quando aquela voz na rádio anuncia:

- Senhoras e senhores, sorriam, o grande CIRCO CHEGOU!.

Toda a cidade jorra poesia.

ALLIMA





Recordações


Havia um sonho
Nele, várias imagens se fundiam
De lembranças pretéritas
Como finos retalhos de fotografia velha.

Um caminho de barro batido
Vermelho, longo
Que apontava uma casa
O portão era de madeira
Dessa bem surrada
Feito porteira de fazenda antiga.

A varanda estava intacta
Com telhas esverdeadas pelo lodo
E algumas colunas corroídas por cupins

Não havia mais portas, foram arrancadas
Nem janelas, apenas estilhaços
A sala estava cheia de folhas secas
No teto, morcegos dormiam
em grandes grupos
o cheiro era de mofo

No quarto de casal
Ninhos de biquinhos
O velho pinico de aço
E a vitrola quebrada
Esquecida há décadas

Ao lado, no outro cômodo
Um berço com pés de balanço
O vento ninava um filhote de gambá
Traziam Visões de um passado vivo
Fazendo-me viajar

No quintal
A imensa mangueira
O pé de jamelão
A corda esticada
Teimando em balançar
Lembro da Vovó me empurrando
Dos sorrisos, do mingau de fubá

Meus olhos esvaíram-se em lágrimas
Quando ao fundo
Vi o antigo galinheiro
Meu avô costumava passar seu tempo
Cuidando, alimentando vidas
Criando nosso sustento.
Bem próximo havia um poço aberto, sem tampa
De onde tirávamos água

Minha visão se perdeu no horizonte
E uma paz me invadia.
Que saudade grande
Como se estivesse ganhando um beijado
Sendo apertado, acariciado, num abraço demorado
Lembranças doces
De uma infância abençoada
Tinha gosto de pudim
Romeu e Julieta (Goiabada com queijo)

A placa na porteira dizia
Em letras quase apagadas:

"Sítio da saudade"

Meu avô era inteligente
Sabia exatamente o que este local
Representaria.

E um imenso sorriso me tomou conta
Numa tarde mais do que Mágica.
Perfeita.


ALLIMA








EU SOU O SAMBA

Luiz caminhava pela rua Do ouvidor
Voltava de uma roda de samba na Lapa.
Passos mansos, e o copo de traçado de mel, anis e velho barreiro
Cantarolava baixinho:

"É o ideal da mocidade
Pois vou viver na cidade
Todo o jovem tem prazer
Tenho orgulho em dizer
Vou viver na orgia
Até morrer..."

Pensava:

- Ah dona Ivone Lara, genial.

Nesta rua desfilava a corte imperial de D. Pedro
Quantas histórias possuem esses sobrados!!!!

Agora entendia porque Machado de Assis, Manuel
Antônio de Almeida, José França Júnior, e Joaquim Manuel de Macedo
Sempre falavam em seus textos da RUA DO OUVIDOR
É berço do Samba de terreiro
Casa de Exu, inspiração de poesias, prostitutas, muita boemia
Isso cheira a carnaval.

Luiz avistou um velho casarão
Que agora abriga uma padaria modesta.
Sentou-se, tirou seu velho chapéu portelense, e pediu um café
A atendente trouxe, e junto havia uma colher.
Luiz sorriu, pegou a colher
E começou vagarosamente a bater no copo, e a sussurrar:

"Você também me lembra a alvorada
Quando chega iluminando
Meus caminhos tão sem vida
Mas o que me resta
É bem pouco, quase nada
Do que ir assim vagando
Numa estrada perdida..."

Exclamou!
- Ah os Velhos Cartola e Carlos Cachaça, sabiam o que diziam.

Dando uma imensa e gostosa gargalhada.

E o sol surgia mais uma vez no Céu do centro do Rio de Janeiro
Como um estandarte de porta bandeira.
Brindando o velho Baluarte
Na mais pura visão de Malandro.
Gingando pelas ruas de pedras.

ALLIMA











MEU CASACO VELHO.

Era um mês tipicamente de inverno. 

Aquele Siroco soprava assustadoramente rumo ao oeste.
Trazia consigo vozes desconhecidas, cheiro de flores e um punhado de poeira densa.
Embaixo do coqueiro, observava o ir e vir do tempo,
que marcava cuidadosamente a rotação da Terra, 
num compasso mais que perfeito da natureza.
Juntei pequenos gravetos secos e ateei fogo para amenizar aquele frio intenso.
Eram 18h e a noite chegava lentamente.
No céu limpo, estrelas despontavam majestosas, surgiam discretamente 
E logo se abria uma janela universal maravilhosa.

Eram constelações inteiras, desenhos imaginários, e lá no alto uma LUA única,

dessas que permitia que víssemos, ainda que a olho nu,
toda sua atmosfera, cavidades e montanhas lunares. 

Aquele instante mágico soava como poesia do próprio Deus. 

Uma leitura ao avesso de Macunaíma. Aquela bola iluminada no espaço me parecia "Muiraquitã".
A vontade era de ir até lá e recuperá-la. 
Certamente é lá que mora a Rosa, na redoma de vidro descrita na obra "O Pequeno Príncipe". 
Estava ali toda personificação do amor e seus mistérios mais profanos.

Sentia que o vento mudava de densidade 

Se chamava agora "Áquilo".
Trazia o sol consigo e vinha do norte, do hemisfério boreal.
Não existiam mais poeiras nele, apenas o perfume deixado da noite anterior.
Era Bia que me cobria, como se fosse meu casaco velho,
tão valoroso e cheio de histórias próprias.
Fomos andando pela areia, abraçados, eu com meu casaco velho e Bia,
agora, em forma de nuvens.
Era o amor me provando mais uma vez sua imortalidade.

ALLima

2 comentários:

  1. No primeiro conto, eu vejo um Rio que nunca andei com minhas pernas, mas sinto o Rio com minha alma. Entre ruas e sentires, o boêmio segue e se ser boêmio parece bastar. Que baste.


    Parabéns, Poeta!

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  2. E o segundo nem tenho palavras. PERFEITO!

    Obrigada Sempre!

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